Perfil neuropsicológico na Síndrome de Tourette:
um estudo de caso
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Tourette Syndrome neuropsychological profile: a
study case
RESUMO
Neste artigo discutiremos os principais achados
da avaliação neuropsicológica de um adolescente com Síndrome de Tourette
(ST), uma desordem neurodesenvolvimental rara que se caracteriza pela
presença de tiques motores e/ou sonoros que, comumente, emergem na infância
ou início da adolescência. Apesar da extensa avaliação de todas as funções
cognitivas, pretendemos aqui centrar nossa discussão sobre as funções que são
apontadas pela literatura como relevantes para a compreensão do perfil
cognitivo neste quadro. Os resultados do caso aqui relatado são compatíveis
com a literatura, e sugerem preservação intelectual e da memória de
longo prazo, bem como déficits no funcionamento executivo, rebaixamento da
velocidade psicomotora e mental, e da memória imediata. A discussão desse
caso, dada a raridade do quadro, pode contribuir para a compreensão do
funcionamento cognitivo de adolescentes com a ST. Finalmente, discutiremos
aspectos importantes para a qualidade da avaliação neuropsicológica e
encaminhamentos terapêuticos para os portadores desta síndrome.
Palavras-Chave:
neuropsicologia, avaliação, cognição, síndrome de Tourett.
ABSTRACT
This
article discusses findings resulting from the neuro-psychological assessment
of an adolescent with Tourette Syndrome (TS), a rare neuro-developmental
disorder characterized by the manifestation of physical and/or audible tics
that emerge in childhood or early adolescence. Although we performed an
extensive assessment of all cognitive functions, our reported findings focus
on those functions that are described in prior research as relevant to the
understanding of the cognitive profile of patients with this condition. The
findings reported here are consistent with other reports and suggest that
intellectual and long-term memory potentials are preserved, while noting
deficiencies in executive functioning, reduced speed of mental and
psycho-motor functions, and decreased recent memory capacity. Given the
rarity of this diagnosis, our reporting of this case should contribute to the
understanding of cognitive function in adolescents with TS. In addition, this
article highlights and describes factors that affect the quality of
neuropsychological assessment and facilitate accurate therapeutical diagnosis
and referral for TS carriers.
Key-Words:
neuropsychology,
neuro-assessment, cognitive, Tourette's syndrome.
1 Introdução
Este artigo tem o objetivo de discutir o perfil
neuropsicológico de um adolescente diagnosticado com a Síndrome de Tourette
(ST), desordem neurodesenvolvimental rara, caracterizada pela presença, há
mais de um ano, de tiques motores e sonoros, simples e complexos,
estereotipados, de intensidade, frequência e severidade variáveis, que
comumente se desenvolvem durante a infância ou início da adolescência, e
persistem por toda a vida (Eddy, Rizzo & Cavanna, 2009).
A ST está associada a rebaixamento da autoestima,
comprometimento do rendimento escolar e presença de dificuldades nas relações
socioafetivo e familiares (Rasmussen, Soleimani & Hodlevsky, 2009). Foi
descrita pela primeira vez em 1825, pelo médico francês Jean-Marc Gaspard
Itard, que atuava na Instituição Real para surdos-mudos de Paris (Kushner,
2000). Os relatos de Itard referem-se ao estranho comportamento da Marquesa
de Dampièrre, nobre francesa de 26 anos que emitia sons e proferia
obscenidades, o que a obrigou a viver reclusa durante grande parte de sua
vida (Kushner, 2000; Bastos & Vaz, 2009). Passados sessenta anos da
descrição de Itard, o neurologista George Gilles de La Tourette partiu do
caso da Marquesa para caracterizar o que denominou de maladie des tics,
em português, "doença dos tiques" (Kushner, 2000; Bastos & Vaz,
2009).
De acordo com a Associação de Psiquiatria
Americana (APA), a ST tem como critérios diagnósticos: a. Múltiplos tiques
motores e um ou mais tiques vocais em algum momento durante a doença, embora
não necessariamente ao mesmo tempo (um tique é um movimento ou vocalização
súbita, rápida, recorrente, não rítmica e estereotipada); b. Os tiques ocorrem
muitas vezes ao dia (geralmente em ataques) quase todos os dias ou
intermitentemente durante um período de mais de 1 ano, sendo que durante este
período jamais havendo uma fase livre de tiques superior a 3 meses
consecutivos; c. A perturbação causa acentuado sofrimento ou prejuízo
significativo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas
importantes da vida do indivíduo; d. O início dá-se antes dos 18 anos de
idade; e. A perturbação não se deve aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância
(por exemplo, estimulantes) ou a uma condição médica geral (por ex., doença
de Huntington ou encefalite pós-viral) (DSM-IV-TR, 2002, p.101).
Os tiques vocais podem ser simples ou complexos.
Os primeiros se expressam através do coçar a garganta, fungar, gritar ou
grunhir. Os tiques vocais complexos são traduzidos pela coprolalia (uso
involuntário ou inapropriado de palavras obscenas), palilalia (repetição de
palavras ou frases) e ecolalia (repetição involuntária de palavras ou frases
de outras pessoas). Os tiques podem ser exacerbados quando os sujeitos se
encontram em situações consideradas ansiogênicas ou que promovam tensão
emocional, ao mesmo tempo em que podem deixar de ocorrer por segundos ou
horas. Adicionalmente, os sujeitos com ST podem igualmente apresentar
comportamentos disfuncionais, tais como a imitação de gestos realizados por
outras pessoas, sejam eles comuns (ecocinese) ou obscenos (ecopraxia) e a
realização de gestos obscenos (copropraxia) (Ramalho, Mateus, Souto &
Monteiro, 2009). A taxa de prevalência da ST tem variado nos estudos. No
entanto, para a grande maioria, o diagnóstico seria encontrado em 0,04 a
0,05% da população (APA, 2002; Nielsen, 1999), com incidência maior (3:1 a
5:1) no sexo masculino (Bastos & Vaz, 2009; Hirtz, Thurman, Gwinn-Hardy,
Mohamed, Chaudhuri & Zalutsky, 2007; Robertson & Yakely, 2002).
A ST está associada a diferentes comorbidades,
tais como ansiedade, depressão, dificuldades de aprendizagem e desordens do
sono (Leckaman, Yeh, & Lombroso, 2003). No entanto, os transtornos
comumente associados são o de déficit de atenção com hiperatividade e o
obsessivo-compulsivo (e.g., Freeeman, 2007, Goetz, 2007, Swain, Lawrence,
Lombroso, King & Leckman, 2007). Considerando que a ST está associada a
diferentes comorbidades, alguns estudos têm sido realizados no sentido de
contribuir com uma melhor compreensão do perfil neuropsicológico de crianças
e adolescentes com essa síndrome. Com esse objetivo e usando estratégias de
investigação similares às utilizadas no presente artigo, podemos citar o
estudo realizado por Bornstein, Baker, Bazylewich e Douglass (1991) que
investigou o desempenho de 28 adolescentes, caracterizados como portadores da
ST, em testes neuropsicológicos. Ainda com o objetivo de definição de um
perfil de funcionamento cognitivo, Cavanna, Eddy e Rickards (2009) fizeram
uma revisão da literatura destacando os principais resultados de estudos
centrais que investigam o funcionamento cognitivo de pacientes com ST. Tais
autores também discutem as limitações e as implicações neurológicas dos
principais achados das pesquisas relatadas.
Os estudos de neuroimagem estrutural e funcional
têm evidenciado alterações nos núcleos da base, notadamente no volume do
putâmen esquerdo, bem como na atividade e metabolismo do córtex pré-frontal,
do estriado, do tálamo, envolvendo o sistema límbico, motor e de linguagem.
De modo geral, pode-se afirmar que as regiões destacadas compõem o circuito
córtico-estriado-talâmico (Bastos & Vaz, 2009). Disfunções neste circuito
ocasionam déficits neuropsicológicos associados aos domínios motor, de
percepção visual, atenção, memória, aprendizagem e funcionamento executivo
(Eddy et al., 2009).
Vale salientar que não há consenso em torno da
etiologia de tais déficits. Algumas pesquisas propõem que as alterações
neuropsicológicas identificadas na ST estariam diretamente associadas às
comorbidades, notadamente às alterações de funcionamento executivo e atenção
(Channon, Pratt & Robertson, 2003). Por outro lado, autores discutem que
as alterações motoras e de processamento visual, consistentemente apontadas
na literatura como vinculadas à ST, seriam identificadas em casos puros da
síndrome, apesar do comprometimento ser considerado menor quando comparados
aos casos de ST associados ao Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDA/H) ou ao Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), tal como
citado por Osmon e Smerz (2005).
Nesse sentido, a investigação neuropsicológica do
quadro clínico ora aqui discutido pode contribuir para uma maior compreensão
acerca do funcionamento cognitivo deste grupo clínico. Consequentemente, pode
também favorecer reflexões acerca das implicações para um planejamento
escolar, bem como guiar a tomada de decisão em termos de reabilitação. Tudo
isso tem o potencial de contribuir para o pleno desenvolvimento de crianças e
adolescentes diagnosticados com a ST.
2 Apresentação do Caso Clínico
L. é um adolescente de 14 anos, cursando o 9º ano
do Ensino Fundamental. Nasceu de parto normal aos nove meses de gestação sem
intercorrências e sem complicações evidenciadas. Segundo os pais, seu
desenvolvimento transcorreu normalmente, com destaque apenas para um pequeno
atraso no início da fala. Relatórios de desenvolvimento escolar também
apontam algumas dificuldades no campo da linguagem (produção/articulação e
compreensão) desde a Educação Infantil. Naquela ocasião, a família buscou
ajuda fonoaudiológica, levantando-se a possibilidade de um diagnóstico
de Dislexia. No campo da matemática, dificuldades são referidas desde os anos
iniciais de escolarização. A situação atual é de baixo desempenho acadêmico
em todas as disciplinas.
Há aproximadamente dois anos, L. apresenta alguns
comportamentos repetitivos que foram identificados como tiques (estalido da
língua e piscar de olhos). O diagnóstico psiquiátrico é de Síndrome de
Tourette. Além do tratamento psiquiátrico, ele tem acompanhamento psicológico
com o objetivo de auxiliá-lo a lidar com a ansiedade e fortalecer sua
autoestima, já que dificuldades de relacionamento, sobretudo no âmbito
escolar, também se tornaram presentes.
O encaminhamento para avaliação neuropsicológica
foi feito pelo psiquiatra, com o intuito maior de investigar a presença de
possíveis dificuldades cognitivas decorrentes do uso da medicação (Primozida
3mg/dia e Metilfenidato 18mg/dia).
Como de hábito em avaliações neuropsicológicas,
além das entrevistas de anamnese, foi utilizada uma bateria de testes que
incluem: instrumentos de avaliação de nível intelectual, testes de avaliação
da atenção e da memória em suas diversas dimensões, testes visuoespaciais e
visuoconstrutivos, testes de avaliação das funções executivas. Dentre estes,
como instrumentos de particular valor para o diagnóstico diferencial,
destacam-se os que avaliam a atenção e as funções executivas.
O processo avaliativo foi realizado em dez
sessões, incluindo duas entrevistas com os pais e instrumentos utilizados,
estão listados a seguir:
- Capacidade intelectiva
* Escala de inteligência wechsler para criança
(WISC-III): Avalia dois fatores ligados à inteligência: QI verbal e QI de
execução. O QI verbal está relacionado ao conhecimento adquirido,
cristalizado, raciocínio sobre materiais verbais, compreensão verbal e
memória operacional sobre conteúdos verbais. O QI de execução, por sua vez,
avalia a inteligência fluida, processamento espacial, organização perceptual
e integração visuomotora.
- Atenção
* Teste de atenção concentrada (AC): Avalia a
capacidade de selecionar um conjunto de estímulos dentre outros, resistir à
interferência de estímulos distratores e dividir a atenção entre três
estímulos específicos.
* D2: Avalia também a capacidade de seleção de um
estímulo dentre outros, enquanto inibe estímulos concorrentes. Tem sobre
outros testes de atenção, a vantagem de permitir um exame mais detalhado da
capacidade de concentração, na medida em que fornece vários tipos de
resultados que tornam possível avaliar separadamente a rapidez, a exatidão, a
qualidade da atenção e a flutuação no desempenho.
- Percepção visual
* Subteste percepção da bateria neupsilin:
Propõe-se a avaliar a percepção visual com ênfase na percepção de faces.
- Memória verbal
* Rey auditory verbal learning test
(RAVLT): O paradigma de aprendizagem auditivo-verbal de Rey é utilizado em
todo o mundo, tanto em pesquisa quanto na clínica. Há consenso sobre sua
validade psicométrica e de que seus vários escores fornecem informações
relevantes sobre diferentes aspectos da memória e da aprendizagem.
- Memória episódica
* Teste de recordação de história: Verifica a
capacidade de armazenar e recuperar informações de caráter episódico,
relativas a fatos que compõem duas histórias que são apresentadas oralmente.
Tais informações são solicitadas logo após a leitura de cada história e,
trinta minutos após, é novamente solicitada a recuperação das informações
contidas em ambas as histórias lidas.
- Funções executivas
* Teste wisconsin de classificação de cartas:
Avalia a capacidade de raciocínio abstrato e a capacidade para modificar as
estratégias cognitivas em resposta a contingências ambientais mutáveis. Como
tal, permite a avaliação das funções executivas, na medida em que requer a
capacidade de desenvolver e manter uma estratégia apropriada de solução de
problema. A tarefa proposta pelo teste demanda planejamento estratégico,
exploração organizada utilizando feedback ambiental para modificar contextos
cognitivos, direcionando o comportamento para alcançar um objetivo e
modulando a tendência a respostas impulsivas.
* Teste de stroop: Avalia a capacidade de
selecionar um aspecto do estímulo enquanto inibe respostas impulsivas ou
usuais. Ou seja, o indivíduo deverá ser capaz de inibir a tendência
automática de leitura de palavras, para, ao invés disso, manter-se fiel à
instrução do teste e dizer apenas a cor na qual a palavra está escrita.
* Teste de fluência verbal: Os testes de fluência
verbal avaliam a capacidade de produzir linguagem, espontaneamente, dentro de
uma estrutura de regras específica. A fluência pode ser investigada quanto
aos aspectos semânticos (da ordem das categorias de palavras) ou fonológicos
(da ordem dos sons que iniciam as palavras). Contribui também para a
investigação de aspectos relativos à memória semântica.
- Visoespacialidade e Visoconstrução
* Figuras Complexas de Rey: Em linhas gerais,
esse teste avalia a organização visuoespacial (percepção), praxia
visuomotora, memória visual, memória de curto prazo, planejamento e
desenvolvimento de estratégias. É um teste de cópia e de reprodução de
memória de figuras geométricas complexas. Objetiva verificar o modo como o
sujeito apreende os dados perceptivos que lhe são apresentados e a
conservação espontânea pela memória.
3 Resultado quantitativo e síntese interpretativa
A partir deste momento, teceremos alguns
comentários a respeito do perfil neuropsicológico de L., apresentando em paralelo
os dados quantitativos da sua avaliação.
Capacidade intelectiva
A análise do seu desempenho na WISC III aponta
para diferença significativa (acima de 15 pontos) entre os escores nos
domínios verbal e de execução, o que representa heterogeneidade da capacidade
intelectiva global. O cálculo da amplitude no domínio não verbal, o cálculo
das diferenças entre os escores fatoriais da escala verbal e da escala de
execução, bem como a análise da discrepância entre compreensão verbal e
organização perceptual, possibilitam afirmar que o QI total não é uma medida
válida no caso de L., exigindo que a análise seja realizada com base no
desempenho isolado nas escalas verbal e de execução, bem como nos valores dos
índices fatoriais. Salienta-se que tal discrepância é por si mesma
significativa, uma vez que estudos indicam que esta comumente associa-se a
lesões e/ou disfunções neurológicas (Figueiredo, 2000).
O desempenho de L. na escala verbal apresentou-se
de acordo com a média esperada (Percentil 58). Já na escala de execução,
obteve a classificação limítrofe (Percentil 05). Esse rebaixamento deveu-se,
sobretudo, ao seu desempenho no subteste de armar objetos, cuja pontuação
ponderada foi de apenas 01 (um) ponto. Tal subteste investiga essencialmente
a organização visuoespacial e a capacidade executiva de planificação, sob
regime de controle do tempo. Tal desempenho explica igualmente a
classificação limítrofe atribuída ao índice fatorial de organização
perceptual (Percentil 05). Tais resultados serão posteriormente discutidos.
Atenção
O desempenho de L. na avaliação da atenção
(testes AC e d2), não foi compatível com déficit de atenção. No d2 demonstrou
capacidade para selecionar corretamente o estímulo (seletividade), para
manter o foco atencional (concentração) e agilidade na execução da tarefa. Em
termos qualitativos, L. percebe os erros que comete e tende a corrigi-los,
ainda que não consiga evitá-los – o que é sugestivo de dificuldade de
controle inibitório, tal como será discutido posteriormente no item "funções
executivas". Tais achados contribuem para o debate acerca da etiologia
dos déficits atencionais na ST. Os resultados apresentados corroboram dados
da literatura que sugerem que os déficits atencionais identificados em
sujeitos com diagnóstico de ST estão mais associados à neuropatologia das
comorbidades do que a aspectos neurobiológicos da síndrome (Osmon &
Smerz, 2005).
Processamento visual
Os achados oriundos da avaliação
neuropsicológica, relacionados ao processamento visual, indicam que não há
dificuldades relacionadas à função perceptiva elementar, ou seja, na
apreensão de estímulos visuais apresentados em diferentes modalidades. No
entanto, déficits são identificados quando a atividade exige a integração
visual, notadamente associada à visoconstrução e às funções executivas de
planejamento, automonitoramento, execução e controle de movimento fino. Nesse
sentido, o desempenho de L. ficou abaixo do esperado nos subtestes armar
objetos (01 ponto ponderado) e cubos (08 pontos ponderados). Ambos subtestes são
da escala WISC III.
Os resultados destacados são semelhantes aos
dados presentes na literatura da área. Comumente, as dificuldades referidas
no processamento visual, decorrentes da disfunção frontoestriatal, são
localizadas nos domínios visuomotor e visuoespacial, mas não no domínio
visuoperceptual. No entanto, é interessante notar que L. obteve resultado na
média superior (Percentil 75) para a cópia da figura complexa de rey,
atividade que exige integração visual e visuoconstrução (Rauch & Savage, 1997).
Nesta direção, estudos apontam para a inconsistência dos déficits no domínio
perceptual, sugerindo que a natureza da tarefa tem papel relevante (Osmon
& Smerz, 2005).
Por outro lado, pesquisas ressaltam que,
comumente, as tarefas que avaliam a visuoespacialidade e visuoconstrução
exigem o controle motor, habilidade comumente afetada, o que torna a
evidência de déficits perceptuais na ST limitada, exigindo investigação
rigorosa, em especial quando é identificada comorbidade com TDA/H (Eddy et
al., 2009).
Memória
A análise do desempenho de L. nos instrumentos de
avaliação dos sistemas mnemônicos indica que ele é capaz de codificar,
armazenar e recuperar informações, reconhecendo mais facilmente que evocando,
como esperado. Tais resultados são similares aos dados da literatura, que
reforçam a inexistência de dificuldades na memória associadas a ST (Eddy et
al., 2009). No entanto, estes mesmos estudos indicam falhas na construção
de estratégias mnêmicas, o que poderia vir a explicar o pior rendimento de L.
na memória imediata quando comparado à memória tardia, ou seja, a informação
precisa de mais tempo para ser processada e armazenada.
A investigação da memória operacional, associada
às funções executivas, revela que L. teve desempenho na média inferior no
subteste dígitos (07 pontos ponderados) da WISC. Torna-se relevante destacar
que comumente, nos casos de ST pura, a memória operacional encontra-se
intacta. Por sua vez, tal sistema é consistentemente comprometido quando a ST
está associada ao TDA/H (Eddy et al., 2009), o que é sugestivo de
comorbidade no caso de L.
Funções executivas
Inicialmente, destaca-se a necessidade de
investigação das funções executivas, não como constructo unitário e
homogêneo, mas essencialmente como conjunto de habilidades que demandam
avaliação específica de seus componentes. Nesse sentido, estão preservadas em
L. as habilidades de abstração e flexibilidade do pensamento, formação de
conceito e construção de categorias, avaliadas pelo teste de fluência
verbal (na média), wisconsin (na média em relação ao percentual de erros
perseverativos, às categorias completadas, às respostas de nível conceitual,
ao número de ensaios para completar a primeira categoria), bem como pelo
subteste de semelhanças do WISC (acima da média, 11 pontos ponderados).
No entanto, no que se refere às habilidades de planejamento,
execução e auto-monitoramento, o seu desempenho aponta para a
possibilidade de dificuldades importantes. A este respeito, destaca-se o
rendimento de L. no item fracasso em manter o contexto do wisconsin (2DP
abaixo da média) e no item aprendendo a aprender (3DP abaixo da média). Tais
aspectos exigem a competência para automonitorar a estratégia utilizada,
sendo esta habilidade bastante sensível à distração. Assim, pequenos deslizes
da atenção nesta tarefa podem gerar grande prejuízo. Além disso, destaca-se o
baixo desempenho de L. nos subtestes do WISC III: armar objetos (1 ponto
ponderado) e cubos (8 pontos ponderados). Nos dois subtestes em questão, além
das competências de planejamento, execução e automonitoramento, estes
demandam competência para coordenar ações psicomotoras amplas e finas, o que
sugere eventuais dificuldades no domínio da visuoconstrução.
Outra habilidade das funções executivas aqui
destacada é o controle dos impulsos, avaliada em dois instrumentos:
stroop e wisconsin. Seu desempenho em ambos os instrumentos sugere
dificuldade. No stroop, o tempo utilizado na execução da tarefa ficou acima
da média populacional (3DP), mesmo considerando que não tenha cometido erros.
Isto indica que ele é capaz de se concentrar e realizar a atividade com
precisão, ainda que o tempo necessário para isso esteja muito acima do seu
grupo de referência, ou seja, parece haver rebaixamento da velocidade
psicomotora. Ainda nessa direção, observa-se que L. ficou 2DP acima da média
no item fracasso em manter o contexto do wisconsin, o que sugere dificuldade
no controle da impulsividade. Dados similares foram encontrados no item
aprendendo a aprender (desempenho abaixo de 3DP), que avalia a capacidade do
sujeito de beneficiar-se da experiência do teste e diminuir, ao longo da
atividade, o número de tentativas necessárias para o alcance do objetivo.
Os resultados supracitados são coerentes com a
perspectiva que defende que a ST não apresenta déficits em aspectos
cognitivos do funcionamento executivo, tais como resolução de problemas e
raciocínio conceitual. No entanto, parece estar associada à presença de
déficits diretamente relacionados ao funcionamento subcortical do sistema
frontoestriatal, comprometendo assim a velocidade motora e mental, o que
configuraria clinicamente uma síndrome desexecutiva (Osmon & Smerz,
2005).
4 Perfil neuropsicológico
O perfil neuropsicológico de L. aproxima-se dos
perfis associados a pacientes com disfunção frontoestriatal, tal como
Parkinson ou Coréia de Huntington. No entanto, vale salientar que a partir da
avaliação neuropsicológica é possível identificar particularidades em termos
de habilidades executivas específicas, relacionadas a cada um desses quadros.
Adicionalmente, ressalta-se aqui a importância de se compreender tais
peculiaridades, por exemplo, pelo fato de que o Mal de Parkinson e a Coréia
de Huntington são patologias degenerativas e a ST não.
O desempenho de L. nas tarefas propostas na
avaliação neuropsicológica sugere déficits no funcionamento executivo,
notadamente em habilidades associadas a áreas subcorticais. Tais achados são
importantes para a compreensão de algumas características do seu perfil
neuropsicológico. Inicialmente destaca-se a discrepância entre os domínios
verbal e não verbal da WISC-III. Relembra-se que o subteste no qual L. obteve
pior rendimento foi armar objetos, que avalia diretamente a visuoconstrução e
visuoespacialidade sob controle de tempo. Tal perfil coaduna-se ao que aponta
a literatura, quando esta sugere a preservação do potencial intelectivo dos
pacientes com ST, mesmo que a discrepância entre as habilidades verbais e de
execução ainda seja um ponto de discordância entre os estudos (Rasmussen et
al., 2009).
O rebaixamento da velocidade psicomotora e mental
pode estar subjacente a outros resultados identificados, como por exemplo, o
baixo rendimento em memória imediata e preservação da habilidade mnêmica a
longo prazo. Nota-se, adicionalmente, que L. não apresentou dificuldades em
tarefas de visuoconstrução nas quais o tempo não interferiu na pontuação, tal
como as figuras complexas de rey. Por outro lado, vale à pena considerar que
L. utilizou mais de sete minutos para a execução da tarefa de cópia, o que
corrobora a perspectiva de comprometimento da velocidade psicomotora e
mental.
Outro ponto importante a salientar é o desafio na
circunscrição da ST pura e a ST associada às suas principais comorbidades, a
saber, o TDA/H e o TOC. Não há unanimidade na literatura em termos da presença
e modalidade dos déficits atencionais e de memória operacional na ST pura.
Tais déficits estão normalmente associados aos transtornos de TDA/H e TOC
(Swain et al., 2007).
5 Considerações finais
Considerando ter sido o objetivo deste artigo,
discutir acerca do perfil neuropsicológico de um adolescente diagnosticado
com uma síndrome rara como o é a Síndrome de Tourette (ST), desejamos
finalizá-lo trazendo à tona a importância da interdependência necessária a
qualquer processo de avaliação neuropsicológica. A saber, a interdependência
entre a utilização de recursos de caráter quantitativo e a necessária
complementação da análise com uma metodologia qualitativa.
Ressalta-se que a avaliação neuropsicológica deve
contemplar um continuum entre aspectos quantitativos e qualitativos,
atentando-se que o baixo desempenho em tarefas cognitivas específicas não
representa, necessariamente, a existência de um déficit cognitivo na função
correspondente. Por vezes, o déficit está associado a habilidades subjacentes
à realização da tarefa. Nesse sentido, o baixo rendimento em teste de atenção
pode não estar associado à seletividade ou à sustentação, mas ao rebaixamento
da velocidade psicomotora, exigida na tarefa de cancelamento, sendo este o
paradigma dominante na avaliação da atenção. Sendo assim, defende-se aqui que
os resultados de uma dada avaliação neuropsicológica devem ser tomados em sua
totalidade, em consonância com a compreensão neuropsicológica do quadro
clínico do paciente e com seus aspectos idiossincráticos.
Diante do exposto, no que se refere ao tratamento
e encaminhamento apontados para L., foi sugerida aqui a manutenção do
acompanhamento deste paciente por um neuropsiquiatra, notadamente em termos
da prescrição e acompanhamento da medicação necessária. Foi sugerido ainda o
acompanhamento psicoterápico, com o objetivo de auxiliá-lo a lidar com a
ansiedade e com a socioafetividade, sobretudo no que diz respeito à relação
com a presença dos tiques. Indica-se ainda o trabalho de reabilitação
neuropsicológica, com o intuito de favorecer o desenvolvimento de estratégias
de planejamento e gerenciamento de resolução de problemas, devendo ser ainda
trabalhadas as suas dificuldades visuomotoras, sobretudo diante de atividades
realizadas dentro do controle de tempo.
Sendo esse um caso clínico raro, sobre o qual
existem ainda poucos relatos de casos, bem como um universo de reflexões
teóricas ainda dissonantes, entendemos que o esforço aqui empreendido tem o
seu lugar de contribuição. Contudo, ainda se constitui como um campo aberto
ao desenvolvimento de novas pesquisas, sobretudo no Brasil.
Finalizando, tecemos alguns comentários a
respeito dos limites deste artigo. Em primeiro lugar, gostaríamos de destacar
que este relato de caso é proveniente de um trabalho realizado num contexto
clínico e não resultado de um trabalho de pesquisa em sentido estrito. Como
tal, apesar do caso contribuir para a investigação do perfil
neuropsicológico, traz em si mesmo o limite de ser o relato de apenas um
caso. Contudo, por ser um caso de ST, tem a sua contribuição, dada a raridade
do quadro clínico.
Outro aspecto relevante que merece destaque
acerca de possíveis limitações do presente estudo diz respeito ao caráter
ecológico de uma avaliação. Entendemos que a avaliação ecológica tem um lugar
de destaque inquestionável nos processos de investigação do funcionamento
psíquico e cognitivo, e, tanto quanto possível, deve ser valorizada e
contemplada. No entanto, considerando que este trabalho foi realizado num
contexto de atendimento clínico, isso não pôde ser feito. Apesar de levarmos
em conta aspectos psicossociais, psicoafetivos e psicoeducacionais, isso
ainda não foi suficiente para que o consideremos como uma avaliação ecológica
no sentido mais amplo do termo.
Referências
American Psychiatry Association (2002). Diagnostic
and statistical manual of mental desorders, 4th edition, text revision
(DSM-IV-TR). Washington: American Psychiatric Association.
Bastos, A.
& C. Vaz (2009). Estudo correlacional entre neuroimagem e a técnica de
Rorschach em crianças com Síndrome de Tourette. Avaliação Psicológica, 8(2), 229-244.
Bornstein, R. , Baker G., Bazylewich, T.
& Douglass, A. (1991). Tourette syndrome and neuropsychological
performance. Acta Psychiatrica Scandinavica, 84, 3, 212-216.
Cavanna, A. , Eddy, C. & Rickards, H.
(2009). Cognitive functioning in Tourette Syndrome. Discovery Medicine,
8(43), 191-195, December 2009. Recuperado em: 15 jan, 2012 de <http://www.discoverymedicine.com/Andrea-Eugenio-Cavanna/2009/11/10/cognitive-functioning-in-tourette-syndrome/> Channon, S., Pratt,
P., & Robertson, M. (2003). Executive function, memory, and learning in
Tourette's Syndrome. Neuropsychology, 17(2), 247-254.
Eddy, C., Rizzo, R. & Cavanna, A.
(2009). Neuropsychological Luisects of Tourette syndrome: A review. Journal
of Psychosomatic Research, 67(40), 503–513.
Figueiredo, V. (2000). WISC III. In J.
Cunha (Org.). Psicodiagnóstico V. pp. 603-614. Porto Alegre: Artmed.
Freeman, R. (2007). Tic disorders and ADHD:
Answers from a world-wide clinical dataset on Tourette Syndrome. European
Child & Adolescent Psychiatry,16(1), 15-23.
Goetz, C. (2007). Treating Tourette Syndrome
and Tic Disorders: A Guide for Practioners. New England Journal of
Medicine, 357. Editora Guilford Press, New York.
Hirtz, D., Thurman, D., Gwinn-Hardy, K. ,
Mohamed, M., Chaudhuri, A. & Zalutsky, R. (2007). How common are the
"common" neurologic disorders? Neurology, 68(5), 326-337.
Kushner, H. (2000). A cursing brain? The
histories of Tourette syndrome. London: Harvard University Press.
Leckaman, J. F, Yeh, C. B & Lombroso,
P. J. (2003). Neurobiology of tic disorders, including Tourette's
syndrome, in Pediatric Psychopharmacology: principes and practice. Edited
by Martin A, Scahill L., Charney D & Leckman J. pp. 164-174. New York: Oxford University Press.
Nielsen,
L. (1999). Necessidades educativas especiais na sala de aula. Porto:
Porto Editora.
Osmon, D & Smerz, J. (2005)
Neuropsychological Evaluation in the Diagnosis and Treatment of Tourette's
Syndrome. Behavior Modification, 29(5), 746-783.
Ramalho,
J, Mateus, F, Souto, M. & Monteiro, M. (2008). Intervenção Educativa na
Perturbação Gilles de La Tourette. Revista Brasileira Educação Especial,
14(3), 337-346.
Rasmussen,
C., Soleimani, M. & Hodlevskyy, O. (2009). Neuropsychological Functioning in Children
with Tourette Syndrome. Journal of the Canadian Academy of Child and
Adolescent Psychiatry, 18(4), 307–315.
Rauch, S. L. & Savage, C. R. (1997).
Neuroimaging and neuropsychology of the striatum: Bridging Basic Science and
Clinical Practice. Psychiatric Clinics of North America, 20(4),
741-768.
Robertson, M. & Yakely, J. (2002).
"Gilles de la Tourette Syndrome and obsessive compulsive disorder".
In B. Fogel, R. Schiffer & S. Rao, S. (Orgs.). Neuropsychiatry.
pp. 947-990. Maryland: Williams and Wilkins.
Robertson, M. & Yakely, J. (2002). Gilles
de la Tourette Syndrome and obsessive compulsive transtornos mentais. Edição texto revisado. Porto Alegre: ArtMed.
Swain, J.,
Scahill, L., Lombroso, P., King, R. & Leckaman, J. (2007). Tourette Syndrome and Tic
Disorders: A decade of progress. Journal of American Academy of Child and
Adolescent Psychiatry, 46(8), 947-968.
Endereço para correspondência
Eliana Gomes da Silva Almeida Núcleo de Avaliação Neuropsicológica e Acompanhamento Psicoterapêutico (NANAP) Rua Bernardino Soares Silva, 70 Sl. 301, Espinheiro, CEP 52020-080, Recife – PE, Brasil Endereço eletrônico: eligsa.almeida@gmail.com Pompéia Villachan-Lyra Universidade Federal Rural de Pernambuco, UFRPE, Recife - PE- Brasil Rua Bernardino Soares Silva, 70 Sl. 301, Espinheiro, CEP 52020-080, Recife – PE, Brasil Endereço eletrônico: lyrapomp@gmail.com Izabel Hazin Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, Natal-RN-Brasil Av. Senador Salgado Filho, s/n, Campus UFRN, CCHLA – DEPSI, Lagoa Nova, CEP 59078-970, Natal - RN, Brasil Endereço eletrônico: izabel.hazin@gmail.com
Recebido
em: 21/03/2012
Reformulado em: 03/01/2013 Aceito para publicação em: 07/03/2013 Acompanhamento do processo editorial: Deise Maria Leal Fernandes Mendes |
Este Blog foi criado para informar estudantes e familiares sobre a síndrome de la tourette,temos como objetivo informar sinais e sintomas presentes na síndrome, como forma de ajudar na educação inclusiva sem discriminar as crianças e familiares que necessitam de apoio par o reconhecimento e o tratamento.
terça-feira, 2 de junho de 2015
Perfil neuropsicológico na Síndrome de Tourette: um estudo de caso
Assinar:
Postagens (Atom)